Esta cena foi apresentada no evento DramaMix – Satyrianas 2008, com Carlos Biaggioli e Ana Guasque.
Dois moradores de rua, dormindo em colchões surrados, cobertos com pedações de plástico. Muitas sacolas, bugigangas e calhambengues. Do lado esquerdo, Ramón. Do lado direito, Chantal. Juntam mais de século, folgado. Ramón acorda primeiro. Espreguiiiiiiiiiiiiiiiiiça e começa a rotina de exercícios matinais: alonga os braços, exercita as juntas, sacode o frio. Procura algo em volta. Não acha. Revira plástico, sacola, jornal. Não acha. Perde a paciência.
RAMÓN FIlhos da puta minha escova de deeeeentes!
Não falei? Não se pode mais viver nessa cidade! Não respeitam mais nada. Eu, na minha idade, professor aposentado, tendo que agüentar essas coisas! Devem ter sido os moleques da estação, sim. A pivetada que fica pendurando atrás do ônibus, passando por baixo da roleta, batendo carteira na praça. Molequinhos filhos da puta levaram minha escova de dentes. Pra quê? Ah, vocês riem? Acham engraçado? Deixa essa molecada crescer e vamos ver se acham tanta graça assim.
Chantal começa a se revirar sob seu manto de plástico bolha e jornal. Ramón bufa e faz a cama.
RAMÓN Um tiro no meio da testa, sim, aqui, no meio da testa, pra esse bando de pé rapado. Não está trabalhando, não está estudando, não colabora com a sociedade. Não produz. Pra que sustentar bandido, me diz? Tem é que matar todo mundo, abrir espaço pra esse pessoal jovem que quer trabalhar e fazer mundo. Você não acha?
Chantal se revira mais um pouquinho.
RAMÓN Eu te digo, vamos morar no campo, arranjar uma toquinha no meio do mato, lá se vive bem, em contato com a natureza, no meio das árvores. Passarinho cantando. Não tem poluição, ninguém vai roubar tua escova de dentes. Mas você ‘Não, e o conforto da cidade? Eu preciso morar numa cidade cosmopolita, meu bem’. Pois eu cansei dessa cidade cosmopolita. É assalto, é seqüestro, é grafiteiro, é esse pessoal cheirando craque, no meu tempo não era assim não. Tinha mais respeito.
CHANTAL Começou cedo, hoje.
RAMÓN Comecei sim. Dava pra andar na rua, dava pra mendigar em paz, o cidadão podia fumar sua bituquinha, tomar sua cachacinha sem problema, não tinha medo que viesse uma bala perdida, um seqüestro extorsivo…
CHANTAL Vão te extorqüir o quê?
RAMÓN Pode acontecer, ora, acontece. Não lê os jornais? Antes não era assim não. Era mais tranqüilo. Até o lixo da rua era melhor, não lembra? No tempo dos militares…
Chantal senta na cama violentamente. Grita.
CHANTAL Ah, já começou você com os militares!
Ramón grita mais alto.
RAMÓN No tempo dos militares não era assim não! Eles é que botaram ordem nesse país, sim senhor!
CHANTAL Você me dá vergonha, Ramón. Ver-gonha.
RAMÓN E não tinha roubo, e não tinha assalto, e não tinha seqüestro.
CHANTAL Ah, não tinha seqüestro? Eles não seqüestravam? Ramón, por favor!
RAMÓN Seqüestraram quem tinham que seqüestrar sim. Mataram quem tinha que matar sim! Pra que esse país não fosse tomado por vocês, da luta armada!
Chantal levanta, respira. Começa a fazer a cama.
CHANTAL Hoje eu estou zen. Não vou nem discutir esse discurso de taxista seu, até porque essa merda fascista que você fala não é você que pensa. Só está reproduzindo o veeelho discurso pequeno burguês dessa porcaria de jornal que usa de lençol. Vejam só, pessoal, um exemplo brechtiano: o mendigo sem consciência de classe. Come sobras de comida, mas falando parece o Olavo de Campos. Dorme se cobrindo com o Estadão e sai falando merda.
RAMÓN E você? Dorme se cobrindo com esses pasquins de merda e sai falando em Hugo Chávez.
CHANTAL Pasquins de merda, não senhor, olha o respeito! A Hora do Povo não é nenhum pasquim de merda! É o único jornal que fala a verdade nesse país, que está do lado do proletário, do trabalhador, o único que não compactua com os interesses da classe dominante.
RAMÓN Vocês não existem mais, está sabendo? O Muro de Berlim caiu, Helôôôu.
CHANTAL Sim, e o imperialismo também está caindo, não percebeu? O quê, o Diogo Mainardi não fala nessa joça de revista que você lê? Os chineses estão tomando conta.
RAMÓN Os chineses? Que chineses?
CHANTAL A China comunista, Ramón. O Mao.
RAMÓN Ah claro, o Mao. O Mao! Chantal, acorda! Os chineses são os maiores capitalistas do mundo. Não tem mais comunismo na China!
CHANTAL Você que pensa, Ramón. Estamos crescendo e nos multiplicando! É uma revolução pacífica, o proletariado de todos os países se revoltando contra os velhos jugos patronais! As veias de Latinoamérica finalmente se fechando! E vocês, com esse seu governinho pseudossocialista, esses traidores à causa do povo, vão ser os primeiros a cair.
RAMÓN Nós? Vocês!
CHANTAL Esse governo não é mais nosso há muito tempo. Não reconheço.
RAMÓN Mas foram vocês que criaram! Toma, que o filho é teu. Se depois virou no que virou, não vem botar a culpa na gente.
CHANTAL Quando o exemplo do companheiro Chávez for…
Passa um cidadão e joga duas notas de dois reais no colchão de Chantal. Eles se olham. Ambos saltam ao mesmo tempo, mas ela é quem pega primeiro.
CHANTAL É meu. Já era, é meu. Caiu no meu lado.
RAMÓN O colchão é dos dois. Tem que repartir tudo.
CHANTAL Não. Esse aqui é pra comprar o meu esmalte, eu já te disse. Eu tô sem esmalte.
RAMÓN Dá aqui, Chantal! Comunhão de bens, eu tenho direito à metade! Tem duas notas, pode ficar com uma!
CHANTAL Não senhor. São minhas. Caíram as duas do meu lado, só lamento! Azar o seu!
RAMÓN Ah, a senhora ficou egoísta de repente? Ué? Cadê o Marx agora? Cadê o Bakunin? Como é que era mesmo, ‘toda propriedade é um roubo’, é isso?
CHANTAL Vá tomar no cu.
RAMÓN Socialismo de araque! Só da boca pra fora, na hora do vamover, ó! Vejam só, pessoal, olha a consciência social dela, gente, não percam.
CHANTAL Quer uma nota?
RAMÓN Enfia no rabo.
CHANTAL Te dou uma nota se você falar ‘Viva o companheiro Chávez’.
RAMÓN Morra o punheteiro Chávez.
CHANTAL Não quer falar? Tudo bem. Vou comprar meu esmalte. Tró-lo-ló-lo-ló.
Ramón tem um momento de autocrítica. Revisa suas convicções partidárias.
RAMÓN Viva Chávez.
CHANTAL Como é que é? Não ouvi.
RAMÓN Viva…
Chantal fica com as duas notas na mão. Ramón vacila, não tira os olhos das notas.
CHANTAL Viva… e aí?
Veloz, Ramón arranca as duas notas da mão dela e sai correndo. Chantal sai correndo atrás.
RAMÓN Hahahá! Viva a direita! Viva Pinochet! Viva o PFL! E viva Diogo Mainardi!
Perdem-se na multidão.