SE EU SOUBESSE

Um ADOLESCENTE de dezesseis anos. Ele veste roupas de um adolescente de dezesseis anos. Ele fala como um adolescente de dezesseis anos. Ele tem um corte de cabelo que apenas um adolescente de dezesseis anos usaria. Ele está na frente do computador, sozinho no quarto. Observa vídeos pornô: Uma loira transando com quatro negros. Eventualmente começa a toquetear-se por baixo da calça.

Abre-se um portal multidimensional no meio do quarto, com a velocidade do raio. Surge um homem de trinta e três anos, vestido com roupas de 2035.

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BRAINSTORM

Mesa de café na rua. Duas pessoas jovens sentadas tomando capuccino. No meio deles, um laptop. Olhos nos olhos, ele ouve atentamente o relato dela.

CAMILA
Quando minha mãe veio da Paraíba, ela passou muito trabalho para adiantar a vida, de jeito que eu e os meus irmãos pudesse estudar e ser alguém. Hoje eu sei o valor que a educação tem na formação de uma pessoa. Por isso eu quero uma cidade melhor. Uma cidade onde eu saiba que meu filho possa crescer e se tornar o homem que ele quiser.

ROGÉRIO
O homem que ele quiser? Não soa meio GLS isso?

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ASSALTO-ESCOLA

Um FREGUÊS de paletó e mala de couro, muito apressado, atravessa a cena. É atacado por um APRENDIZ de assaltante.

APRENDIZ
Mãos ao alto!

FREGUÊS
Ah! Não me mate! Pode levar tudo! Leva, leva tudo, mas deixa eu ir! Por favor! Não me mate!

O Aprendiz parece meio, assim, na dúvida.

APRENDIZ
Sim, sim… âhn…. sssim. Me dá.

FREGUÊS
O que você quer?

APRENDIZ
Âhhnnn… você… você tem… dinheiro?

FREGUÊS
Como é que é?

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COLCHÃO DE ASPARGOS

Luz difusa. Entra em cena um Ator. Leva longo vestido azul-crisálida. Tem os pés descalços. Suavemente, ouve-se a Sonata para Piano N.º 1, de Pierre Boulez.
Anda lentamente, arrastando os pés, e ao chegar à frente levanta lentamente o braço direito, fazendo a saudação nazista. A música abaixa, transformando-se em um carnavalito boliviano.
Soa forte e vibrante uma campainha. O ator pára, surpreso. Aparece pelo lado direito um Explicador, de paletó azul-marinho. Acomoda a gravata e se dirige ao público.

EXPLICADOR    Senhoras, senhores. A cena que vocês estão assistindo é uma performance. Continue Lendo “COLCHÃO DE ASPARGOS”

O AMOR

Mais uma cena da série ‘Destempo’ sobre viagens ao passado. A esta série pertencem os textos ‘Se eu soubesse‘ e ‘O paulista do Futuro‘.

Cela de um convento do fim do século xix. cama, criado-mudo com vela, cristo de madeira. felicia, uma jovem catequista, reza de joelhos. Uma freira mais velha acompanha sua reza. Depois do amém, a menina deita embaixo dos lençóis.

FREIRA
Boa noite, Felicia.

FELICIA
Boa noite, irmã Dulce.

A freira apaga a vela e sai, trancando a porta. O quarto fica escuro. Após um tempo, Felicia levanta e confere pela fresta da porta se a freira já foi embora. Tira de baixo do colchão uma vela e a acende com um fósforo. Coloca-a no criado-mudo, e fica aguardando sentada na cama. Olha pela janela.

Abre-se um portal dimensional. Aparece no meio do quarto Toninho, um homem de uns quarenta e poucos anos com uma tendência à calvície que as viagens temporais não conseguem impedir.

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SOBRE PRÍNCIPES E PRINCESAS

Apartamento nos subúrbios do Rio de Janeiro. Mãe de meia-idade cobre com edredom seu filho, um menino de cinco anos que usa uma bandana vermelha na cabeça. É hora de dormir.

MÃE
Então, faz muito, muito tempo, quando a mamãe era muito bonita…

FILHO
A mamãe é muito bonita.

Como sempre após essa fórmula de rigor, a Mãe sorri e beija o menino na testa.

MÃE
Mamãe era tão bonita, mas tão bonita nessa época, que as pessoas
pagavam pra ela ser bonita.

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ESTRELA E CORAÇÃO

Eu com quatorze já sei tudo da vida, só não tenho namorado. O que acontece é que não acontece nada por aqui, viu. Essa época do ano até que é melhorzinha porque tem a Festa do Boi e a cidade lota de turista passando de navio pra Parintins, e enche de gringo que bate foto e fala esquisito, e é bom porque eles comem muita tapioca. A gente tem banca na praça, eu e a mãe e o Caú. E quando acontece acontece tudo junto: festa do Boi, Copa do Mundo e coro de anjos.

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CIELITO LINDO

Digamos que você é ator. Digamos que você é contratado pela Nova Schin para gravar uma promoção via web em que você tem que fazer o papel de um cavaleiro templário e correr o circuito do Kartódromo de Itu. Digamos que a gravação seja interrompida pela chuva torrencial e você se refugia sob seu escudo junto com um autêntico Mariachi mexicano. O que você faz? Pois bem,

Como dizia Melissa Browne, um antigo amor: ‘Quand on est dans la merde jusq’au cou, on ne peux pas faire plus que chanter.’

QUANDO EU ERA JACARÉ

Eu era Jacaré. Digamos que me chamasse ‘genérico’, pois meu nome em língua Jacaré eu nem saberia pronunciar. Não quero parecer saudosista, mas o povo daquele tempo sabia tratar Jacaré como merece. Um primo meu, bacana, morava no templo com piscina só pra ele, com filé de escravo no almoço e na janta. Eu não tive tanta sorte; morei a vida toda com a família, num túnel de pedra escuro e úmido. Não conhecia nem o dia nem a noite. Uma vez a cada tanto caía um raio fininho de sol por uma portinhola que abria no céu de pedra. E por uma escadinha estreita desciam elas.

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Prêmio Jabuti!

Eu não tinha a intenção de beber, senhor policial, mas acontece que a Coleção Primeiras Obras, que reúne textos da nova safra de dramaturgos de São Paulo, foi indicado ao Prêmio Jabuti na categoria Livro de Arte, sabe como é. E nessa coleção tem um texto meu: ‘Lá Fora’ . Foi só por isso. Sim, sim, eu prometo me portar melhor da próxima vez.

Impostergável

Décimo quinto andar, do lado de fora. A: suicida. B: amigo.

Décimo quinto andar, do lado de fora. A: suicida. B: amigo.

A: Chega! Eu vou acabar com tudo!

B: Calma! Caaaalma. Vamos conversar um pouquinho. Cê não precisa fazer isso.

A: Não vale a pena viver sem Raquel.

B: Porra amigão, pára com isso! Nenhuma mulher vale tanto.

A: Amigão… amigão! Que belo amigão você hem! Nove anos. Nove anos: um, dois, três, quatro, cinco, nove. Na alegria e na pobreza. E um belo dia, pimba, adeus casamento. E o motivo? O amigão!

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Quando há amor não existem números

Ela está sentada num banco de praça lendo a Bravo! deste mês.
Ele chega dirigindo um Volkswagen vermelho, estaciona de primeira, desce do carro de um salto. No rádio do carro toca uma ária de Donizetti. Senta do lado dela e lhe dá um beijo nos lábios.
Ele – Feliz dia dos namorados!
Ela – Ai amor, obrigada, que perfeito! Cê ensaiou isso pra sair tão legal?
Ele – O quê?
Ela – Esse momento, você chegando com o carro assim. Foi incrível. Até a trilha é perfeita, nossa. Um momento mágico.
Ele – Legal, né? Vamos no cinema?

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2012

Banheiro da mansão DeBroogens, perto de Estocolmo.

O banheiro é amplo e claro, com aquecimento central, hidromassagem e plantas de verdade. As torneiras são de ouro maciço. Um relógio com motivos mexicanos indica que são oito horas da manhã.

J. H. DeBroogens, herdeiro e acionista maioritário do conglomerado DeBroogens, efetua sua evacuação matinal. Ele está vestido com pijama de seda e impecável robe com iniciais em dourado. As iniciais repetem-se no tampo do vaso e nas pantufas de linho egípcio. Displicentemente, conversa com sua amante através de um pequeno smartphone com vídeo e viva-voz. Ao mesmo tempo, assiste por um enorme telão os resultados da Fórmula 1, coisa que lhe atrai muitíssimo mais a atenção do que a conversa.

 

J.H. DE BROOGENS

Já não se pode mais confiar nem nos cavalos, Charlize.

 

CHARLIZE

E isso não é nada. Acredita que o médico demorou quatorze – quatorze – minutos em chegar ao stud?

 

J.H. DE BROOGENS

Você precisa compreender que os pakistaneses têm outra noção de tempo, querida.

 

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Isso não é Rasga Coração!

Para quem não conhece, ‘Rasga Coração’ é um grande clássico do teatro brasileiro, escrito por Oduvaldo Vianna Filho. A primeira montagem é de 1979, dirigida por Zé Renato.


Em 1985, meu pai, Néstor Monasterio, dirigiu uma montagem de ´Rasga Coração’ em Porto Alegre.

Esta cena foi apresentada na Escola Livre de Teatro de Santo André, em dezembro de 2008, como trabalho de conclusão do Núcleo de Direção Teatral, coordenado por Luiz Fernando Marques, com Andrea Serrano e Mayra Guanaes (que entrou substituindo Beatriz Leite) nos papéis de Veridiana e Rita, respectivamente.

 

VERIDIANA está na cozinha de casa, limpando os vidros com um pano. Olha pela janela alguma coisa no prédio da frente, que chama sua atenção.

VERIDIANA              Olha só a vagabunda. Sai do banho e fica andando pelada com a janela aberta. É uma vadia mesmo.

Entra chegando da rua RITA, filha de VERIDIANA. Surpreende a mãe na janela.

RITA                           Oi, mãe.

VERIDIANA              Ah, oi filha! Tudo bem? Como é que foi o ensaio?

RITA, indiferente, larga a mochila em qualquer lugar, pega o controle remoto e um prato com bolachas, e senta na poltrona, frente à TV. Acende e fica assistindo.

RITA                           Bom.

VERIDIANA              O que vocês fizeram?

RITA                           Ah, ensaiamos.

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Lá Fora

Há um ano atrás, fui convidado a escrever e dirigir uma peça breve para apresentar no DramaMix, evento das Satyrianas, na Praça Roosevelt. Este é o texto que foi encenado, com Ana Guasque e Flávia Teixeira, Jefferson Collacico no contrabaixo, e figurinos de Marion Velasco. A eles meu agradecimento.

“A”    Psht!

“B”    Mmmh…

“A”    Acorda!

“B”    O que foi?

“A”    Tem alguém lá fora.

“B”    Não tem não.

“A”    Tem sim! Escuta.

“B”    Não to ouvindo nada.

“A”    Eu tenho medo.

“B”    Boa noite.

RUIDO.

Flávia Teixeira, Ana Guasque
Flávia Teixeira, Ana Guasque

“A”    É Ele!

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Três mulheres e um rio

Na cidade indiana de Vrindaban, onde Krishna passou sua infância, refugiam-se atualmente cerca de 13 mil mulheres viúvas, vindas de todas partes do país. A mulher viúva, lá, é considerada de mau agouro. Esta matéria de Ana Gabriel Rojas nos conta como elas vivem, após terem sido rejeitadas por amigos e familiares.

Recentemente, em um núcleo de dramaturgia, o professor pediu que escrevêssemos uma cena sobre essa notícia. Este foi o texto que apresentei.

Riacho à sombra de uma figueira. Três mulheres vestidas com longos saris brancos.

A mais velha lava uma pilha de roupas brancas no riacho.

A mais nova, sentada em um banco, chora compulsivamente.

A do meio, sentada ao seu lado, lhe oferece um copo de chá.

A DO MEIO                  Toma, toma um pouco.

A MAIS NOVA            Não, eu não quero, obrigado.

A DO MEIO                  Vai te fazer bem.

A MAIS NOVA            Obrigada. Eu não quero.

A DO MEIO                  Beba.

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Ramon e Chantal, críticos

 

Deitados em colchões de papel-jornal, Ramon e Chantal, dois moradores de rua com certa idade, assistem uma peça de teatro de rua.

CHANTAL                 Olha que imagem linda. Trouxe a lata de cola?

RAMON                     Trouxe.

CHANTAL                 Deixa eu.

RAMON                     Tem bem pouquinho. Deixa pra quando passarem o chapéu.

CHANTAL                 Olha só, a Julieta é o ó do borogodó. Não tem projeção de voz.

RAMON                     Mas que trabalho de corpo.

CHANTAL                 Eu falo do ponto de vista artístico, Ramon. Pode parar de olhar as pernas dela?

RAMON                     Não tem como, meu amor. Ela está de perna de pau. Bem na altura dos olhos.

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O Paulista do Futuro

 No meio da rua acontece uma explosão eletromagnética com forte luz branca, e se abre um portal multidimensional. Aparece Eng, um homem jovem, vestido com roupas sexualmente ambíguas, misturando estilos e cores em explosões de materiais sobrepostos. Ele fala muito rápido e parece um pouco desorientado. Se dirige à platéia.

 ENG    (Olhando para o céu.) Ué? Cadê o tubo de luz? O que que é isso blue lá em cima? Merdavida, que calor! Naõ tem ar condicionado aqui? Vim parar no meio da selva? Ai papito, tudo em volta só cannibals. Búbúbúbú! Será que eles capisce? Parecem bem glerbs. Continue Lendo “O Paulista do Futuro”

Samovar

Em cena, um homem, duas cadeiras, uma mesa e um samovar. Um par de xícaras.
Ele fala.

 

O homem é um agente secreto do governo do Battirkistão. Lhe é confiada uma missão ultrasecreta no país Zahirkistão. Ganhará novo nome, nova identidade, novo passado, novo rosto, novo passaporte. Mas não é possível arriscar a que ele seja descoberto e a missão revelada, pois esta – que não saberemos – é importante demais.

 

Lhe é servido, então, um certo chá de raízes, que produz o esquecimento de tudo quanto sabe sobre si e sobre seu passado. Assim, ao entrar ao Zahirquistão identifica-se totalmente com sua nova identidade, mero bibliotecário que mora no bairro dos músicos, e acredita puramente que nunca saiu de lá. Todas suas lembranças do Battirkistão são substituídas em seu cérebro, através do chá, por lembranças de uma infância e juventude no Zahirkistão, onde nunca esteve.

Esquece inclusive – ai – a missão que lhe havia sido encomendada.

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Colher de Merda

 

No meio da praça, tem um posto com uma enorme panela do Serviço Público de Distribuição de Merda (SPDM). A merda ainda está fresca, porém já quase no fim. É servida com uma concha em copos de plástico, por um funcionário de avental beige e crachá do Governo do Estado. Na fila, três pessoas tremendo de frio: uma mulher com criança no colo, uma senhora de idade, um office-boy.

 

MULHER                    É brincadeira, deixar as pessoas esperando dessa maneira!

 

OFFICE BOY             E tudo por uma colher de merda.

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Ramón e Chantal

Dois moradores de rua, dormindo em colchões surrados, cobertos com pedações de plástico. Muitas sacolas, bugigangas e calhambengues.

Do lado esquerdo, Ramón. Do lado direito, Chantal. Juntam mais de século, folgado.

Ramón acorda primeiro. Espreguiiiiiiiiiiiiiiiiiça e começa a rotina de exercícios matinais: alonga os braços, exercita as juntas, sacode o frio. Procura algo em volta. Não acha. Revira plástico, sacola, jornal. Não acha. Perde a paciência.

Esta cena foi apresentada no evento DramaMix – Satyrianas 2008, com Carlos Biaggioli e Ana Guasque.
Dois moradores de rua, dormindo em colchões surrados, cobertos com pedações de plástico. Muitas sacolas, bugigangas e calhambengues. Do lado esquerdo, Ramón. Do lado direito, Chantal. Juntam mais de século, folgado. Ramón acorda primeiro. Espreguiiiiiiiiiiiiiiiiiça e começa a rotina de exercícios matinais: alonga os braços, exercita as juntas, sacode o frio. Procura algo em volta. Não acha. Revira plástico, sacola, jornal. Não acha. Perde a paciência.

RAMÓN FIlhos da puta minha escova de deeeeentes!

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Não falei? Não se pode mais viver nessa cidade! Não respeitam mais nada. Eu, na minha idade, professor aposentado, tendo que agüentar essas coisas! Devem ter sido os moleques da estação, sim. A pivetada que fica pendurando atrás do ônibus, passando por baixo da roleta, batendo carteira na praça. Molequinhos filhos da puta levaram minha escova de dentes. Pra quê? Ah, vocês riem? Acham engraçado? Deixa essa molecada crescer e vamos ver se acham tanta graça assim.

Chantal começa a se revirar sob seu manto de plástico bolha e jornal. Ramón bufa e faz a cama.

RAMÓN Um tiro no meio da testa, sim, aqui, no meio da testa, pra esse bando de pé rapado. Não está trabalhando, não está estudando, não colabora com a sociedade. Não produz. Pra que sustentar bandido, me diz? Tem é que matar todo mundo, abrir espaço pra esse pessoal jovem que quer trabalhar e fazer mundo. Você não acha?

Chantal se revira mais um pouquinho.

RAMÓN Eu te digo, vamos morar no campo, arranjar uma toquinha no meio do mato, lá se vive bem, em contato com a natureza, no meio das árvores. Passarinho cantando. Não tem poluição, ninguém vai roubar tua escova de dentes. Mas você ‘Não, e o conforto da cidade? Eu preciso morar numa cidade cosmopolita, meu bem’. Pois eu cansei dessa cidade cosmopolita. É assalto, é seqüestro, é grafiteiro, é esse pessoal cheirando craque, no meu tempo não era assim não. Tinha mais respeito.

CHANTAL Começou cedo, hoje.

RAMÓN Comecei sim. Dava pra andar na rua, dava pra mendigar em paz, o cidadão podia fumar sua bituquinha, tomar sua cachacinha sem problema, não tinha medo que viesse uma bala perdida, um seqüestro extorsivo…

CHANTAL Vão te extorqüir o quê?

RAMÓN Pode acontecer, ora, acontece. Não lê os jornais? Antes não era assim não. Era mais tranqüilo. Até o lixo da rua era melhor, não lembra? No tempo dos militares…

Chantal senta na cama violentamente. Grita.

CHANTAL Ah, já começou você com os militares!

Ramón grita mais alto.

No tempo dos militares

RAMÓN No tempo dos militares não era assim não! Eles é que botaram ordem nesse país, sim senhor!

CHANTAL Você me dá vergonha, Ramón. Ver-gonha.

RAMÓN E não tinha roubo, e não tinha assalto, e não tinha seqüestro.

CHANTAL Ah, não tinha seqüestro? Eles não seqüestravam? Ramón, por favor!

RAMÓN Seqüestraram quem tinham que seqüestrar sim. Mataram quem tinha que matar sim! Pra que esse país não fosse tomado por vocês, da luta armada!

Chantal levanta, respira. Começa a fazer a cama.

CHANTAL Hoje eu estou zen. Não vou nem discutir esse discurso de taxista seu, até porque essa merda fascista que você fala não é você que pensa. Só está reproduzindo o veeelho discurso pequeno burguês dessa porcaria de jornal que usa de lençol. Vejam só, pessoal, um exemplo brechtiano: o mendigo sem consciência de classe. Come sobras de comida, mas falando parece o Olavo de Campos. Dorme se cobrindo com o Estadão e sai falando merda.

RAMÓN E você? Dorme se cobrindo com esses pasquins de merda e sai falando em Hugo Chávez.

CHANTAL Pasquins de merda, não senhor, olha o respeito! A Hora do Povo não é nenhum pasquim de merda! É o único jornal que fala a verdade nesse país, que está do lado do proletário, do trabalhador, o único que não compactua com os interesses da classe dominante.

RAMÓN Vocês não existem mais, está sabendo? O Muro de Berlim caiu, Helôôôu.

CHANTAL Sim, e o imperialismo também está caindo, não percebeu? O quê, o Diogo Mainardi não fala nessa joça de revista que você lê? Os chineses estão tomando conta.

RAMÓN Os chineses? Que chineses?

CHANTAL A China comunista, Ramón. O Mao.

RAMÓN Ah claro, o Mao. O Mao! Chantal, acorda! Os chineses são os maiores capitalistas do mundo. Não tem mais comunismo na China!

CHANTAL Você que pensa, Ramón. Estamos crescendo e nos multiplicando! É uma revolução pacífica, o proletariado de todos os países se revoltando contra os velhos jugos patronais! As veias de Latinoamérica finalmente se fechando! E vocês, com esse seu governinho pseudossocialista, esses traidores à causa do povo, vão ser os primeiros a cair.

RAMÓN Nós? Vocês!

A China Comunista!

CHANTAL Esse governo não é mais nosso há muito tempo. Não reconheço.

RAMÓN Mas foram vocês que criaram! Toma, que o filho é teu. Se depois virou no que virou, não vem botar a culpa na gente.

CHANTAL Quando o exemplo do companheiro Chávez for…

Passa um cidadão e joga duas notas de dois reais no colchão de Chantal. Eles se olham. Ambos saltam ao mesmo tempo, mas ela é quem pega primeiro.

CHANTAL É meu. Já era, é meu. Caiu no meu lado.

RAMÓN O colchão é dos dois. Tem que repartir tudo.

CHANTAL Não. Esse aqui é pra comprar o meu esmalte, eu já te disse. Eu tô sem esmalte.

RAMÓN Dá aqui, Chantal! Comunhão de bens, eu tenho direito à metade! Tem duas notas, pode ficar com uma!

CHANTAL Não senhor. São minhas. Caíram as duas do meu lado, só lamento! Azar o seu!

RAMÓN Ah, a senhora ficou egoísta de repente? Ué? Cadê o Marx agora? Cadê o Bakunin? Como é que era mesmo, ‘toda propriedade é um roubo’, é isso?

CHANTAL Vá tomar no cu.

RAMÓN Socialismo de araque! Só da boca pra fora, na hora do vamover, ó! Vejam só, pessoal, olha a consciência social dela, gente, não percam.

CHANTAL Quer uma nota?

RAMÓN Enfia no rabo.

CHANTAL Te dou uma nota se você falar ‘Viva o companheiro Chávez’.

RAMÓN Morra o punheteiro Chávez.

CHANTAL Não quer falar? Tudo bem. Vou comprar meu esmalte. Tró-lo-ló-lo-ló.

Ramón tem um momento de autocrítica. Revisa suas convicções partidárias.

RAMÓN Viva Chávez.

CHANTAL Como é que é? Não ouvi.

RAMÓN Viva…

Chantal fica com as duas notas na mão. Ramón vacila, não tira os olhos das notas.

CHANTAL Viva… e aí?

Veloz, Ramón arranca as duas notas da mão dela e sai correndo. Chantal sai correndo atrás.

RAMÓN Hahahá! Viva a direita! Viva Pinochet! Viva o PFL! E viva Diogo Mainardi!

Perdem-se na multidão.

Viva o Camarada Chávez!